Wednesday, November 8, 2017

Carta ao Pai Natal

Cabrão.

Hoje sinto-me cansada, por isso bebi café. Bebi demasiado café (na verdade preciso de mais um), agora tenho um cérebro acelarado.
A culpa é tua.

Não consigo pensar, mas tenho o cérebro acelarado. (repito-me.)
A culpa continua a ser tua.
Vais morrer.
Felizmente, todos morremos.
Tu vais morrer primeiro. Vou fazer questão disso. Não sabes ainda. Não tens cuidado. 
És ingénuo (talvez)...

Vais morrer.
Cabrão.
Vais morrer.


(O Pai Natal não recebe cartas. Até pode existir, mas ninguém envia cartas ao Pai Natal. 
Escrever sim, as crianças escrevem cartas com os seus respectivos desejos. Os pais não as enviam; e mesmo se quisessem, quem sabe a morada do Pai Natal?
Escrever cartas ao Pai Natal é escrever sem intenção de envio. Envelopes sem destinatário.)


Cumprimentos.

Sunday, January 19, 2014

Amar um morto

"All these people they don't even know me
but I love how you think you know me 
better than I know myself"



Levanto-me ainda a dormir. Levanto-me sem saber para onde vou. Levanto-me... Ainda morto. 
Nasci morto. Cresci morto. Morri quando acordei. (não morri: nunca vivi. para morrer é necessário viver.)
Não morri...
Levanto-me. Morto. O costume. Enfrento mais um dia da minha morte. Espero um dia viver, não sei bem porquê.

O morto que passeia sem rumo. O morto que grita sem pulmões. O monstro que nunca viveu...
Fascino-te. Sou tudo o que queres ser. O homem que nunca viveu. Ninguém quer viver. Excepto eu. Quero viver porque estou morto. Se fosse vivo queria morrer.
Fascino-te... Queres amar-me. Amar um morto. Rídiculo. Amar um estranho...

Deito-me, já a dormir. Deito-me sem necessidade. Deito-me... Ainda morto.

Friday, October 4, 2013

O Gago

A..aaa..aa....
(Fala logo!)
Está... está... na hora...


Gaguejava, o imbecil. Manda-a para a cama! Faz o que quiseres com ela! Mostra-lhe quem manda!
Não queria. Recusava-se. Era gago. Ser gago é ter medo. Ter medo é ser imbecil. És um imbecil.

É... é ta...é tarde...

Gaguejava, o imbecil! É TARDE! Grita-lhe! GRITA! Não te sentes melhor?

Aaa...

Nem tentes! Imbecil, é tarde! A estas horas não se fala! A estas horas não se gagueja. A estas horas não se escreve. A esta hora dorme-se. Mas ninguém aqui sabe mandar. Ninguém manda o gago para a cama. O gago não manda a miúda para a cama. Ninguém vai para a cama: todos têm medo. Têm medo do sono, os imbecis.

Quero atenção.

O gago não vê nada, limita-se a perder-se nas suas patéticas sílabas. A miúda é miúda, não sabe nada. Quer atenção.
Querem atenção.

O gago grita: Vai dormir!
Mentira. Não grita, é gago. O imbecil.
O gago grita: Eu é que mando em ti! Faz o que eu te digo!
Mentira. Não grita, é gago. O imbecil.

A miúda faz birra. Chora, grita, esperneia. Sem problemas: não é gaga, somente imbecil.

E agora? Quem vai pôr ordem na casa? O gago é gago. Ninguém é capaz de calar a miúda. Alguém cale a miúda!

Está na hora. A miúda é imbecil, mas tem sono. Adormece, sem atenção.
Está na hora. O gago adormece, sonhando com sílabas soltas e repetidas. Até na ficção é gago. O imbecil.

Thursday, October 3, 2013

Hoje li o teu olhar.


 Olá, José.

Hoje li-te. As tuas palavras desenharam o punhal que escondes. Vi-o: o punhal que será o nosso fim. Não o queria ver. Não o queria ler. A tua arma lírica encostada ao meu peito...
As tuas palavras cansam-me. Enlouquecem-me. Pára. Sai desse quarto fechado, não escrevas mais. Isto tudo, para quê? Pensas... Quis dizer-te boa tarde, mas cheguei tarde. Os curtos dias de outono não me deixam olhar-te. Olho-te sem te ver. Vejo as tuas palavras e choro. Hoje li-te. Chorei.
Inundas-me com as tuas palavras; afundo-me na sombra: A sombra da tua solidão... (És o reflexo do vazio.) Deixo as tuas palavras recheadas de dor perfurarem-me. Abandonas-me no chão gelado a sangrar frases mal ditas... Olhas-me com páginas em branco. Num suspiro, que esqueces de escrever, saltas. O teu vazio balonça por baixo dessa árvore rodeada de sol.
Hoje li-te. As tuas páginas mataram-nos: arrastaram-nos para o vazio: as tuas páginas uniram o nosso olhar... Um olhar que nunca existiu.

  Adeus, José.

Saturday, May 18, 2013

Inverno primaveril

A qualidade do frio é congelar o ser humano, obrigá-lo a parar. Hoje falhou a sua tarefa. Este vendaval parece derrotar tudo excepto o que deve: os dedos. Com o corpo imóvel, cada imbecil sente-se obrigado a utilizar o que lhes resta, e escrevem. O inverno é o jardim da imbecilidade literária.
Claramente, sou imbecil. Obviamente. Nitidamente. Imbecil. Está frio. Não me estou a desculpar... Ou melhor, estou, mas não sou igual aos outros. Eu sou um imbecil diferente. Eu sou Imbecil (maiúsculo! grande!), sou a Imbecilidade Divina! Convidei Adão para visitar o meu jardim, Eva ficou em casa. A Salomé trouxe chá. O João foi baptizar mais um imbecil que certamente virá escritor. Lanchar, com Salomé e Adão, ao som do vento. Arrependi-me.
Do jardim. De obedecer ao frio. Judas avisou-me. Judas é sábio. Judas...
Judas explicou-me como era o jardim. Foge, gritou. O frio não nos abandona neste jardim. O frio persegue-nos e derruba-nos, até sermos vento. O jardim tornou-me imbecil (ou foi o chá?). E aqui me encontro, sentada, entre Adão e Salomé. Judas avisou-me. Judas é sincero.
Judas esteve aqui, noutro tempo. O maior amigo que poderás ter é Judas. Abraçou-me no meio do vendaval. Mostrou-me o sol. A maçã foi mais sedutora, trouxe-me a este jardim. Judas não escreve, vive. O meu maior desejo é ser como Judas – não ser um mero apóstolo, uma personagem confusa, um escritor imbecil. Quero ser uma alma. Ser realmente alguém. Não ter frio.
Os dedos deveriam ser os primeiros a congelar, só assim o Homem ficaria eternamente calado. O inverno é o jardim da imbecilidade literária. Hoje não é inverno, simplesmente está frio. Este congelou os imbecis. (principalmente os cérebros. deixaram de respirar. tremes. tremes. tremes... está frio.)
Não gosto de maçãs. Uma cereja desfruta o calor dos meus lábios.

Thursday, January 10, 2013

Arte que pisa o último degrau.

Queria ser artista. Tentei, falhei.
Insisti. Quero ser artista! Tentei, falhei.
Não desistas, dizem. És artista, tenta! Falhei.
Continuei assim até entender o significado de artista.
O artista é um criador, e eu não passo de uma mera criação.

Monday, December 10, 2012

Hoje.

Trabalha, Bárbara. Hoje é o teu dia. Luta, Bárbara. Hoje é o teu dia.
Hoje é o teu dia, Bárbara...
Os teus longos cabelos esvoaçam ao vento. O sol está sob o teu controlo. A natureza, hoje, pertence-te. Hoje, o mundo é teu.
Eu, inclusive, sou teu. Apenas hoje, pertenço-te. Tocas-me com o vento, bruscamente. Nunca foste meiga. Nunca fui teu. Excepto hoje. Hoje sou teu.
Força, Bárbara. Hoje é o teu dia!

Hoje, desvaneço. Hoje, morro. Hoje, não sou ninguém. Não trabalho. Não luto.
Não te toco. Amanhã não estarei cá. Sê meu, apenas hoje. Serei meiga.
Não me abandones, Daniel. Hoje não. Sente comigo a natureza, a fragilidade do vento.

A morte é superior a ti, a mim, e à própria natureza. A morte levou-nos... Hoje? Amanhã? Um dia. Levou-nos, como se nos embalasse para dormir: suavemente. Fechamos os olhos, mergulhamos na escuridão, e adormecemos.